É preciso democratizar o Estado

Segundo Marilena Chauí, estrutura criada pela classe dominante é autoritária e não corresponde aos anseios da sociedade brasileira

Por Renato Rovai e Glauco Faria

Conversando com a filósofa Marilena Chauí percebe-se algo que já é evidente em suas obras: não se trata de uma intelectual qualquer. Fala de fato aquilo que pensa e não tem medo de assumir posições difíceis quando o momento é adverso. Foi assim recentemente quando, em meio à crise vivida pelo governo Lula, virou saco de pancadas de muitos, principalmente da mídia conservadora que chegou a aventar um dito silêncio irreal.Mas isso não a abalou. Continua na esquerda, no PT e acredita na refundação do partido que ajudou a construir. Repudia o acordo feito com o PSDB que evitou uma devassa no governo FHC e prega, como tarefa urgente para o país, a reforma política para a democratização do Estado brasileiro, que tem uma forma completamente oligárquica e autoritária. Na entrevista a seguir, a filósofa fala sobre estrutura partidária, direita e esquerda e o que se pode esperar de um eventual segundo governo de Lula.

Fórum - Levando em consideração que estamos em meio ao processo eleitoral, a senhora pode iniciar esta entrevista fazendo uma reflexão a respeito da reforma política?

Marilena Chauí - A reforma política é questão prioritária, e digo isso porque aconteceram dois momentos decisivos na história brasileira que transformaram a forma das instituições políticas brasileiras e fizeram-na a ser como são hoje. O primeiro instante abordei em Leituras da Crise, livro da Editora Perseu Abramo. Trata-se da reforma realizada por Geisel e Golbery. Naquele momento, se faz um arranjo político de maneira a garantir mais poderes à Arena em relação ao MDB. E o resultado incide particularmente no problema da representação. Por conta disso, a forma da representação no Brasil ainda hoje está toda determinada por uma visão de poder do final da ditadura.Mesmo com o processo de democratização do país, não se tocou naquilo que, do ponto de vista da operação da política, foi a chave do poder ditatorial. Então, quando me refiro à necessidade da reforma política, o primeiro alvo é desmontar a estrutura partidária montada pelo general Golbery do Couto e Silva.O segundo instante é o que acontece com o Estado brasileiro durante o governo Fernando Henrique, que, entre outras metas, teve as de desconstruir, desinstitucionalizar e desconstitucionalizar o país pela demolição do aparelho estatal. Aí temos um campo minado. Como é que se vai efetivamente governar, legislar, representar e operar a presença do Estado na área social e na definição do perfil econômico do país se, por conta da forma como se estrutura a representação, o governante não pode contar com base legislativa. A noção do voto proporcional, a aritimetização da representação, a falsa proporcionalidade e a desconsideração dos mecanismos efetivos dessa representação tornam impossível um partido político que ganhe no Executivo governar o país. E os governantes convivem em escala menor com esse problema no plano do estado e no plano municipal. O resultado disso é a falsa aliança, na medida em que, para que ela existisse efetivamente, seria necessário definir um projeto político e um programa de governo que representasse efetivamente as posições sociais, econômicas e políticas dos aliados. E isso não tem acontecido no Brasil. Nem mesmo na aliança do PFL com o PSDB ou na do PT com o PL, que foi uma brincadeira. Isso significa que o atual modelo também compromete o partido como instituição, porque ele não consegue exprimir-se em termos nacionais e não tem condições de realizar no governo a expressão do seu projeto político-partidário. Isso é uma catástrofe e vale para todos os partidos.

Fórum - Mas a crise de 2005 teve como ponto central a questão da corrupção, a senhora então parece apontar que isso está relacionado à forma de organização política do país?

Marilena - Não se pode fazer do combate à corrupção um combate moral. É verdade que têm aqueles que não se deixam corromper, mas a verdadeira corrupção se dá por conta da forma como está estruturada a instituição, que produz como ação possível dela a corrupção. Então, quando penso a reforma política, tenho que tratar da mudança da representação e da reforma partidária, do modo de expressão do Legislativo e do Judiciário, da relação entre cada partido e a aliança que ele realiza e sua expressão nos projetos e programas sociais. Isto tudo implica também uma mudança no nível do aparelho estatal.É bem verdade que o governo Lula recompôs muito do aparelho estatal, mas há ainda outro problema para além da decomposição a que foi submetido no governo FHC. Na medida em que o Estado brasileiro foi montado pela classe dominante brasileira, ele é regulado juridicamente por um conjunto de leis, pareceres, resoluções, decretos e portarias que a concepção que essa classe tem da política, do Estado e do que deve ser um governo. Há uma muralha jurídica que impede um partido de esquerda realizar metade de suas propostas.Quando estávamos na prefeitura [Marilena Chauí foi secretária de Cultura no governo de Luiza Erundina em São Paulo], cada proposta que vinha de uma das secretarias ou da prefeita e que tinham relação com a questão social encontrava uma barreira no setor jurídico que explica por que, do ponto de vista da lei, não se podia realizar aquilo. Então, a primeira resposta que se tem do ponto de vista jurídico é sempre um não pode. E vai desde o não pode de uma gravidade imensa até o não pode folclórico. Não pode uma atividade cultural com os deficientes mentais, porque isso é uma coisa para a Secretaria de Saúde. E a Secretaria de Saúde não pode fazer oficinas com os deficientes mentais porque isso é uma coisa da Secretaria de Cultura. Além dessa coisa ridícula, deste não pode ridículo, há o não pode para valer. Não pode mexer na iluminação da cidade, na rede de esgoto, não pode intervir no plano diretor, não pode fazer a tarifa zero... E assim vai, ou seja, não há como realizar um projeto de esquerda. Um programa de governo de esquerda é minado, destruído cotidianamente pela estrutura do Estado.Sendo assim, reforma política também tem que ter em mente a democratização do Estado brasileiro que tem uma forma completamente oligárquica e autoritária. Não basta o conjunto de propostas que a Constituição tem, fruto do trabalho dos movimentos populares, é preciso vontade política e um poder político capaz de desenvolver a democratização do Estado.

Fórum - O presidente Lula no início do seu mandato não optou por um certo bom-mocismo na relação com o status quo. Será que ele não pode repetir esse caminho caso seja reeleito?

Marilena - Infelizmente ele optou pela transição. E eu fui contra isso. Achei um absurdo aquela coisa de bolo de noiva [nome do local onde se instalou a equipe de transição do governo Lula]. Muitas vezes, escrevi sobre o risco de pensar o início do governo como uma transição. Não se podia fazer com a política neoliberal do FHC uma transição, teria que ter havido uma ruptura. O que você chama de bom-mocismo foi efetivamente não mexer na política econômica que estava implantada e não fazer aquilo que, ao meu entender, teria sido indispensável e que teria evitado o que aconteceu no ano de 2005. Deveria ter sido feita uma devassa naquele governo. Não se fez a devassa, não se propôs a ruptura com o poder econômico e se aceitou como forma de iniciar o percurso a transição.

Fórum - A senhora tentou argumentar contra isso, conversar com outros acadêmicos, com gente do PT a respeito de suas posições contra esse modelo de transição?

Marilena - Fizemos reuniões de intelectuais com o Paulo Vanuchi, fizemos uma primeira reunião lá no Banco do Brasil, com o Lula, Palocci, todos. E houve uma longuíssima arenga do Palocci, do Zé Dirceu etc., explicando porque seria daquele jeito. Um grupo, do qual faziam parte o Chico de Oliveira e o Fabio Konder Comparato, disse então tchau e bênção. Outro grupo se mortificou, comeu as unhas e foi para casa. E alguns, como eu, ficaram lá para ser saco de pancadas do país. Para poder justificar ao país o injustificável, viramos saco de pancadas. Mas à época, pensava o seguinte: é por um desejo infantilmente esquerdista que não quero que seja assim. Preciso ser racional, realista, e entender os limites que a realidade impõe ao nosso desejo...

Fórum - O argumento a favor do caminho de uma transição era convincente ?

Marilena - Sim, era uma coisinha depois da outra. Tudo o que eles explicavam tinha uma certa lógica, um caminho. Houve momentos em que havia até cronograma. Coisas como, no mês tal será assim, no outro assado e nós ficamos completamente convencidos de que o cronograma tinha sentido (risos). A sorte do Lula é que ele tinha um outro conjunto de ministros e de quadros no setor social fazendo, dentro dos limites que a estrutura estatal permite, uma mudança profunda.

Fórum - Dentro desse contexto, como a senhora explica o PSDB? Qual a seu ver é o projeto político-partidário deles?

Marilena - É preciso levar em conta que o PSDB nasce contra o quercismo. Sai de dentro do PMDB contra o Quércia e com um discurso moralista, mas, na prática, a saída teve a ver com o fato de o grupo que o organizou ter perdido poder no PMDB. Ou seja, o Quércia tinha ganho a parada e esse grupo resolveu sair. A saída também precisa ser entendida a partir da mesma lógica da não-entrada desse grupo no PT. Por que esse grupo não entrou no PT? Ouvi deles que não iam entrar porque não aceitavam ser conduzidos por um macacão azul. É literal. Diziam não vamos ser conduzidos por um macacão azul. A criação do PSDB se dá por falta de alternativa. E por que decidem se assumir como social-democratas? Também é preciso levar em conta o que tinha acontecido com a social-democracia que os levou a se denominar assim. A social-democracia era o new labor e a Terceira Via, portanto um compromisso claro com a política neoliberal. A aliança que se deu com o PFL, embora deva ser explicada a partir de todos os defeitos que é o horror da nossa estrutura partidária e a forma da representação que temos, não é gratuita. Foi a escolha de um aliado que não tem programa. O programa do PFL é manter as coisas como estão para ver como é que fica, ele tem como meta a manutenção do poder que vem desde o período colonial. Por isso, insisto, essa aliança não foi casual. Foi a aliança da ausência de programa e projeto de um grupo que tinha por objetivo a permanência de certas formas de poder econômico e político, com o programa da Terceira Via, que é perfeitamente compatível com a hegemonia neoliberal e com a perspectiva oligárquica do PFL.

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