Universidade para todos
Por: Marcos V. Manarinno
Nunca poderia imaginar que um dia estivesse alí, na porta da universidade, sonho impossível de tantas gerações.Família pobre, filho e neto de lavradores, criado sob o signo do sofrimento, filho meu tem que trabalhar cedo, senão vira preguiçoso!O peso da enxada curvou o menino, depois saberia que aquele desvio na coluna poderia ter sido tratado, mas saúde era coisa de benzedeira e parteira, médico só em último caso, caso de morte ou de Hospital, de um hospital longíquo e de difícil acesso.Nascera em casa, assim como todos os seus irmãos, penca de irmãos, cada um herdando as roupas dos outros, menino na roça não tem precisão nem de roupa nem de brinquedos, qualquer coisa vira brinquedo, na imaginação de criança.Barriga inchada, pernas finas, lombrigas e solitárias comendo tudo por dentro, os olhos remelentos olhavam para o céu distante e pediam mais um irmãozinho para a coleção; 10 ou 11 fora os que não vingaram; Deus sabe o que faz, a diarréia também.Pegar lenha pra mãe fazer a comida no fogão de lenha, comida gostosa, frango aos domingos, carne de lata do leitão engordado à meia com o patrão do pai, coronel, mas bom, o padrinho, vida escorrendo como o córgo cheio de lambaris e acarás; bagres de noitinha ...Moleque levado e descalço, vez em quando cortava o pé; fumo de rolo, teia de aranha e a história do tétano, medo, graças a Deus, escapando das doenças...Sorte dele, pois o seu irmãozinho mais novo aguou, menino fraquinho teve tosse comprida e Deus levou.A escolinha era longe, andava a pé, pés descalços, formiga lava-pé, domingo missa, lavar a alma dos pecados. Pecado de menino é arte, moleque levado, lavado no ribeirão, à beira da felicidade, sem saber, era o rei. Reinado de criança pobre, passa rápido, o trabalho e a enxada não darão descanso...- Esse capetinha desse moleque tem parte com o demônio, não vai dar nada na vida... Praga de avó pega, assim como ele pegava e sumia com as coisas da Vovó Danda, só de molecagem, adorava ver a avó irritada, nervosa, depois beijava, cafuné... Histórias de guerreiros lá de longe, da bela que dormia, pobrezinha e da moça bonita que casou com o príncipe, pobre que nem ele, mas que por ser boazinha...Natal, Papai Noel, nada de brinquedo, a mãe inventava de dar um par de sapato, prá que? Sola grossa não carece sapato, carece brinquedo, mas brinquedo nunca vem, ,somente o tal do sapato...Assim cresceu, menino solto, moço trabalhador, honesto, mãos calejadas, enxada e ancinho, colheita de café, trabalho duro, frio e jararacas soltas na plantação. Quase foi picado, escola longe, sacrifício, esperança...Dos irmãos, alguns envelhecidos, rugas precoces, sol escaldante, irmãs desdentadas, mãe doente, pai cansado, velho e envelhecido, nunca envilecido, orgulho de moço temente a Deus, escola longe, teimosia grande, terminou o ensino médio.Noites mal dormidas, olheiras à vista, cansaço maior, fora bem no ENEM, mas tinha o vestibular. Meu Deus, fazer vestibular, coisa de rico, coisa de filho de fazendeiro ou de rapaz da cidade, queria viver na roça e da roça, Medicina Veterinária, coisa bonita, bichos e criação, sonho de menino, sonho da família, filho Doutor...Não é que o filho da dona Maria e do seu Jonas conseguiu passar no vestibular?Mas faculdade particular é cara, família pobre, sapato velho e calças remendadas, mão cheia de calo, quem trabalha não tem dinheiro para pagar...PROUNI - desconto total, bolsa integral, salário de ajuda, sonho de menino, realidade do homem, esperança.Mãe vou embora, não chora, seu filho vai ser doutor, volto um dia, faculdade longe, bem atrás do horizonte, longo horizonte, belo horizonte pra quem nasceu olhando prá longe e com as mãos na terra. Poder trazer nos meus olhos, os retratos da cidade grande, da vida grande, do grande amor, dos sonhos graúdos de quem nunca descansou.Pai, saúde, qualquer coisa me liga, qualquer coisa me chama, teu filho te ama, vai procurar ser feliz, se cuida meu velho...A porta da faculdade se abriu para aqueles pés cansados e olhos castanhos nunca tão verdes como agora.