Terra de Ninguém e de Alguns

Enviado por: Redação da Revista Fórum

Por Eduardo Maretti

Meu filho, eu não tenho nem como explicar. Eu não entendo nada (de política), aí não posso explicar a ninguém.? A fala é de Maria Neves, mineira de Itaberaba, que mora ?há um bocado de anos? em São Francisco do Conde, a 70 quilômetros de Salvador, no Recôncavo Baiano. Ela responde sobre como é viver ali e qual sua opinião a respeito do trabalho da prefeitura a favor dos moradores da cidade, que tem o maior PIB per capita do país (R$ 283 mil), de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).O município arrecada R$ 200 milhões por ano graças a impostos e royalties gerados pela produção da refinaria da Petrobras Landulpho Alves-Mataripe, a segunda maior do país, com produção de 307 mil barris de petróleo por dia. Mas essa riqueza não chega a Maria, uma dos 30 mil habitantes do município que fazem parte de outra estatística: a dos que têm uma renda média de R$ 370 mensais, pouco mais de um salário mínimo.Maria mora em um bairro de nome significativo, Babilônia. Fica na periferia, onde predominam casas de taipa e casebres de alvenaria inacabados, perfeito habitat do barbeiro, motivo pelo qual a cidade tem alto índice de doença de Chagas, causada pelas fezes do inseto. Para entender a relutância e o laconismo de Maria Neves ao falar da realidade em que vive, basta olhar para a fachada da sua casa, razoavelmente melhor do que as muitas do entorno: é de alvenaria e pintada. O detalhe que chama a atenção de longe é que a parede da frente da pequena habitação é um outdoor improvisado da campanha de Antonio Calmon (PFL), que governou entre 2001 e 2004, foi reeleito prefeito da cidade e cassado por abuso de poder político e econômico em fevereiro último pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE), depois de uma batalha judicial que atravessou 2005 e ainda não acabou. Por conta disso, o atual prefeito, segundo determinou o Judiciário, é Antonio Pascoal, do PMDB, segundo colocado nas eleições de 2004.Clientelismo e corrupçãoSão Francisco do Conde se transformou em notícia no país a partir do pedido de afastamento do agora (ou pelo menos por enquanto) ex-prefeito Calmon, pelo Ministério Público Federal (MPF), em 8 de julho de 2005, justificado pela necessidade ?de fazer cessar a prática reiterada de crimes em desfavor do erário?. As diligências começaram no âmbito do Programa de Fiscalização de Municípios a partir de sorteios públicos da Controladoria-Geral da União, projeto do governo federal de combate à corrupção na administração pública.Em 2005, já no segundo mandato de Antonio Calmon (PFL) ? filiado ao grupo de Antonio Carlos Magalhães ? a prefeitura chegou à incrível marca de cerca de 8 mil funcionários, aproximadamente um quarto da população. É isso mesmo: um em cada quatro moradores da cidade trabalhava no Executivo ou é por ele aposentado. Os outros três quartos são oriundos da indústria petrolífera, agricultores, pescadores, pessoas de fora que chegaram em busca de uma chance, simples desempregados ou aqueles trazidos pelo destino, como a própria Maria Neves, que desembarcou em São Francisco do Conde para casar.A força do clientelismo e da influência da administração municipal na vida dos cidadãos é ilustrada por um quadro de matiz realista e oligárquico: ao chegar à praça central da cidade, onde fica a prefeitura, qualquer morador sabe se o prefeito está ou não no ?palácio?. A presença de pessoas sentadas nos bancos da praça e circulando em torno do prédio, como mariposas à busca de luz, delata a presença. Se a praça está vazia, significa que o chefe local não está. Vão para ali em busca de emprego e favores. Em troca de votos, num futuro distante ou não.Exemplo: em frente à prefeitura há um bar, uma espécie de quiosque grande, semelhante aos de praia. Perguntada sobre como é trabalhar ali, se tem lucro ou não, a ?gerente? Eliane Ramos esclarece: ?Eu trabalho para a prefeitura, tô aqui passando os dias, ela que é dona do estabelecimento?, explica. ?É concessão de uso.?Como mudar esta situação-símbolo de um país arcaico que teima em existir no século XXI, sob um feudalismo tardio travestido de democracia, forjado no clientelismo, no voto de cabresto mais cru, na compra de votos e na perpetuação das desigualdades? Segundo José Carlos Araújo Lima ? mais conhecido como Pipia, ex-secretário de Educação nos governos de Osmar Ramos (1989-1992) e Antonio Pascoal (1993-1996), ambos do PMDB ?, para superar a crise sistêmica é imprescindível a formação de lideranças por parte da esquerda, no estado da Bahia.O povo concorda, mas sob uma ótica menos teórica. ?Aqui nós não temos mão-de-obra qualificada nem para quando a refinaria precisa de um pedreiro, de um soldador, de um encanador. Então esse é o motivo de todo mundo na frente da prefeitura, porque todo mundo precisa viver. Toda a população depende dela?, diz o petroleiro aposentado José dos Santos Machado, um negro de olhar matuto que, perguntado sobre a situação política da localidade, disfarça e deixa claro que não quer se comprometer: ?Em São Francisco do Conde a única coisa que eu faço é votar. Não sou contra o atual prefeito, nem contra o que saiu?.

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(A íntegra na edição 38 da revista Fórum, nas bancas de todo o país)

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